Ônibus: um problema com prazo curto e solução obrigatória em Porto Alegre

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O sistema de ônibus de Porto Alegre ainda não tem uma solução no horizonte, mas há um prazo para se chegar até ela: são três anos até que o modal entre em colapso.
Em um cenário ideal, previsto em licitação, a frota de ônibus da cidade teria idade média de cinco anos. Amargando ano a ano redução de passageiros, as concessionárias do serviço deixaram de renovar os veículos, elevando a média para os atuais nove anos. Ao final de 2022, a frota atingirá o número mágico de 12 anos, o limite da vida útil de um ônibus de linha. Se os gráficos seguirem crescendo para onde apontam, as concessionárias que formam a Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP) afirmam que não terão capacidade de investimento para comprar veículos novos. 
Somado a isso, Porto Alegre já cobra a passagem mais cara entre as capitais brasileiras — R$ 4,70, mais do que os R$ 4,50 praticados em Curitiba e Belo Horizonte — e discute aumento para este ano. A tendência é que um novo reajuste na tarifa afaste ainda mais passageiros, e que isso leve as empresas a calcular um acréscimo de preço ainda maior para o ano seguinte, alimentando o círculo vicioso de um ônibus cada vez mais caro e sucateado.
Um dos consensos entre autoridades, empresários e especialistas consultados para esta reportagem é que Porto Alegre acordou tarde para o problema, ao menos em termos de financiamento do sistema. Faz uso da mesma solução histórica e convencional — o simples recálculo do preço de um mesmo serviço — diante uma variável inédita que demandaria uma reação nova do poder público: a concorrência com os aplicativos de transporte de passageiros, que começaram a operar na cidade em novembro de 2015. Desde então, foram 5 milhões de passageiros perdidos no período: de 24,4 milhões para 19,4 milhões. Se comparado ao ápice do sistema em 2012, antes da crise econômica, são 8 milhões de passageiros a menos em oito anos, uma redução de 29%.
— A passagem de Porto Alegre é cara? Minha resposta é: depende. Para ir até o Centro Histórico, é caro. Para ir até o Lami é mais de uma hora de viagem por R$ 4,70. Porto Alegre, em determinado momento da sua história, topou que os ônibus de trajetos curtos sustentassem os longos. Eram as viagens curtas que faziam o sistema se tornar sustentável. Só que, com a chegada dos aplicativos, esse foi justamente o perfil de usuário que saiu do sistema — resume Fabio Berwanger, diretor-presidente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC).
A crise do transporte público frente à concorrência dos aplicativos é global, mas Porto Alegre tem agravantes. Conforme uma extensa pesquisa da empresa Moovit — aplicativo focado em calcular trajetos de transporte público —, na comparação entre 10 das principais metrópoles brasileiras, Porto Alegre é a segunda com as menores distâncias percorridas pelo transporte público. Enquanto a viagem média do porto-alegrense tem 7,8 quilômetros, o carioca passa 13,1 quilômetros dentro do veículo. A capital gaúcha ainda lidera o ranking de tempo poupado: 31,6% chegam do ponto de origem ao destino final em menos de 30 minutos. Problema é que isso significa mais situações em que optar pelo aplicativo em vez do ônibus é financeiramente atraente, ainda mais em modalidades de corridas compartilhadas.
De dentro do seu carro, o porto-alegrense pode se perguntar se o sistema de ônibus precisaria mesmo ser salvo. Por que não se render a alternativas como o transporte individual de passageiros? O trânsito não permite que isso seja uma alternativa. Conforme a EPTC, se os ônibus urbanos tivessem 15 lugares em vez de 45, isso já seria o suficiente para que a cidade congestionasse de vez. Imagina se não existissem. Ademais, o transporte é um direito previsto na Constituição.
Para contornar o problema, há dois grandes desafios. O primeiro: tornar o ônibus mais atrativo mesmo com pouco dinheiro à disposição. O segundo, tentar obter recursos de fora do próprio sistema de ônibus para subsidiá-lo. A boa notícia é que há iniciativas promissoras em curso para ambos. Mas, de acordo com o secretário de Mobilidade Urbana, Rodrigo Tortoriello, é preciso primeiramente uma virada de consciência:
— É duro vender um serviço cujo sonho do cliente é cair fora dele, como é o ônibus. Mas o porto-alegrense precisa se conscientizar de que manter um sistema de ônibus saudável é melhor para todo mundo, esteja o cidadão dentro dele ou fora.
Do caldo ao surfe na tecnologia
De acordo com Pedro Palhares, gerente geral da Moovit no Brasil, a empresa israelense obedece a uma espécie de mantra no seu dia a dia: a tecnologia é uma onda, ou você surfa ou é derrubado por ela. Boa parte dos engenheiros do aplicativo trabalha, segundo Palhares, para direcionar aos usuários do transporte público tecnologias que serviram anteriormente para derrubá-lo, como o compartilhamento de trajetos por GPS.
— Mais importante do que qualquer outro fator, como o conforto dos veículos, está a confiabilidade do sistema. O usuário do ônibus precisa saber se chegará do ponto A até o ponto B no tempo que tem à disposição. Se vai ter ou não ar condicionado, por exemplo, é uma questão que ele vai pensar depois. Quanto tempo demorou para o usuário do ônibus no Brasil saber com rapidez qual linha ele precisa pegar e em quanto tempo o veículo vai chegar? — questiona Palhares.
Em Porto Alegre, demorou quase quatro anos para que o passageiro de ônibus tivesse na tela do celular o que o usuário dos aplicativos têm desde o primeiro acesso: uma estimativa de tempo para que o veículo chegue até o passageiro. Em operação desde agosto passado, o aplicativo CitaMobi é motivo de orgulho para as concessionárias: além de mostrar a quanto tempo as linhas estão de cada parada, há informações sobre o trajeto e o veículo (se tem ar condicionado, por exemplo). A demora, segundo a ATP, foi necessária para obter um produto confiável.
— Não adiantava colocar no ar um GPS com margem de erro de 20%. Hoje, o aplicativo erra 2% das estimativas de tempo. Só em 2018 surgiram tecnologias que nos permitiram chegar a esse grau de confiabilidade. Antes, tínhamos o problema de um ônibus com GPS só poder servir a uma linha, por exemplo, enquanto os coletivos de Porto Alegre operam em até três linhas em um mesmo dia — explica Antônio Augusto Lovatto, engenheiro de transportes da ATP.
Foram 175 mil downloads do CitaMobi desde agosto, com média de 1,3 milhão de acessos por mês. Há ampla margem para crescimento. Conforme a QualiÔnibus Porto Alegre, pesquisa de satisfação encomendada pela prefeitura sobre o sistema, com dados coletados em novembro passado, 51% dos usuários declararam não saber sobre a existência do aplicativo e 23,2% sabiam, mas nunca haviam testado. Apenas 14% o utilizam com frequência.
Outras inovações tecnológicas qualificaram o modal, como o reconhecimento facial dos passageiros, as câmeras de segurança e a expansão da bilhetagem eletrônica. Isso, aliado a esforços de investigação que incluíram a criação de uma delegacia exclusiva, fez com que o índice de assaltos em coletivos de Porto Alegre caísse 75% no intervalo de três anos: de 3.804, em 2016, para 938, em 2019. Há mais inovações em curso: desde agosto, a partir dos dados coletados via GPS, funciona na EPTC um observatório de mobilidade, que conta ainda com informações dos aplicativos Waze e 99 por meio de parcerias.
— Nossa expectativa é, em breve, poder usar esse big data para resolver problemas em tempo real, como reforçar uma linha a partir da maior demanda de passageiros, ou flagrar rapidamente um motorista que está descumprindo o trajeto — exemplifica Flavio Tumelero, gerente de planejamento da operação de transportes públicos da EPTC.
Caminhos abertos para o ônibus
A maior medida recente para qualificar o ônibus, todavia, é um tanto analógica. Custou apenas um pouco de tinta azul e alguma dor de cabeça. São as faixas exclusivas. É consenso entre especialistas que o transporte público funciona melhor quando segregado dos demais modais. É o que afirma, por exemplo, Petras Amaral Santos, head de inovação da Marcopolo Next, setor de inteligência da fabricante de carrocerias de ônibus:
— Observo duas grandes oportunidades para Porto Alegre melhorar o seu sistema de forma relativamente barata. Ter meios de transporte alimentadores do sistema principal, que podem ser até mesmo os lotações funcionando por demanda via aplicativo, integrados a um arranjo de faixas exclusivas rápidas para longas distâncias. Já se trata de uma cidade com bom número de corredores, cabe planejar como ampliar e otimizar essa malha viária.
Entre usuários de ônibus, a percepção é semelhante. De acordo com a QualiÔnibus Porto Alegre, 90% deles acredita que as faixas exclusivas melhoram o transporte coletivo e 86,6% afirmam que as faixas diminuem o tempo de viagem. O presidente da EPTC, todavia, não disfarça a irritação ao falar sobre a recepção dos recém implementados 22 quilômetros de faixas exclusivas junto à opinião pública.
— Não se trata de maltratar os motoristas de carro, como muitos dizem, mas de priorizar o transporte coletivo para dar vantagem a quem opte por ele. E a vantagem é para todos: se há 10 pessoas no ônibus, são em média cinco carros a menos congestionando o trânsito. Outro argumento ruim é de que as faixas estão sempre vazias, pois isso é justamente um bom sinal. É uma via rápida. Se houvesse um congestionamento de ônibus, seria um sinal de que a faixa não funciona — analisa Fabio Berwanger, presidente da EPTC.
De acordo com a prefeitura, apesar dos muxoxos dos motoristas de automóveis, as faixas em ruas e avenidas como Independência, Ipiranga, Goethe e Conceição (na região da rodoviária) diminuíram entre 25% e 30% os tempos totais de viagem, com 65% de redução nos trechos delimitados. Sair do congestionamento também acarreta uma diminuição de custos entre 15% e 20% nas linhas envolvidas. Somados aos corredores preexistentes, Porto Alegre soma cem quilômetros de faixas exclusivas.
— Se fossem tão inúteis para o trânsito, eu não estaria recusando semanalmente pedidos para utilizar a faixa. Carros-fortes, vans escolares, automóveis oficiais... Se fosse atender a todos, eles ficariam todos dentro e eu poderia colocar os ônibus para fora — brinca Berwanger.
Rachar a conta é o maior desafio
Por melhores e mais eficientes que sejam os veículos, a convicção de autoridades e empresários é de que o sistema de ônibus de Porto Alegre não voltará a ser financiado de forma sustentável se contar apenas com o pagamento das passagens para bancá-lo.
— É legítimo que a sociedade opte, por exemplo, em dar a passagem grátis para quem tem mais de 65 anos. O que nunca foi justo é a sociedade toda fazer uma opção (isentar determinados tipos de passageiros) e apenas os demais pagarem por ela. O que aconteceu agora é que esse debate foi além da questão das isenções. A sociedade vai ter de participar financeiramente do transporte público como participa da saúde pública ou da educação — declara Gustavo Simionovschi, diretor-executivo da ATP.
Visão semelhante está por trás do pacote de mobilidade enviado pelo prefeito Nelson Marchezan à Câmara de Vereadores em janeiro passado. Entre as principais medidas em tramitação, três buscam novas formas de injetar recursos no modal de transporte. Na prática, a prefeitura tenta buscar dinheiro novo para não ter de fazer o mesmo que outras tantas cidades brasileiras: gastar recursos do tesouro municipal para manter a passagem acessível. Em São Paulo, por exemplo, não fossem mais de R$ 3 bilhões injetados anualmente pela prefeitura, a tarifa saltaria de R$ 4,40 para R$ 7,30.
Em crise financeira, Porto Alegre tenta mexer em novos bolsos. Primeiramente, das empresas de aplicativos, que passariam a pagar R$ 0,28 por quilômetro rodado pelo uso da malha viária da cidade. Atualmente, é o projeto que mais prospera na Câmara. Outros potenciais contribuintes seriam os motoristas de fora da Capital, que passariam a pagar  pedágio de R$ 4,70 para entrar na cidade, ideia que gerou revolta e ameaças de revanche dos prefeitos da Região Metropolitana.
O terceiro deles, embora inusitado, é bem recebido por especialistas. Livremente inspirado no modelo de Paris, que banca parte do seu sistema de transporte tributando os contracheques dos parisienses, o projeto prevê a cobrança de uma taxa para as empresas de Porto Alegre por funcionário. Em troca, todos os empregados receberiam passe-livre para o transporte coletivo, dispensando a necessidade de pagamento de vale-transporte no sistema urbano.
O truque é que as empresas passariam a pagar a taxa para todos os celetistas, em vez pagar vale-transporte apenas para quem opte por recebê-lo. A prefeitura estima valor entre R$ 90 e R$ 120, enquanto o vale-transporte mensal custa em torno de R$ 250. Outro ponto importante é que a taxa seria cobrada exclusivamente das empresas, e não descontada dos salários.
— Dizem que o projeto é inconstitucional porque a legislação do vale-transporte é federal. Isso, na minha opinião, é discutível. Mas nunca vi tantos ministros do Supremo como aqui em Porto Alegre — ironiza o secretário Tortoriello.
Resiliência contra o dumping
Embora a crise do ônibus avance em alta velocidade, autoridades e especialistas acreditam que a concorrência com os aplicativos, em questão de tempo, penderá para o sistema público. Um dos fatores determinantes é o limite das cidades para tantos carros trabalhando em serviços de aplicativos, problema que já aflige metrópoles como São Paulo.
A leniência da legislação brasileira com o efeito dos aplicativos nos sistemas públicos é um fator apontado como problemático, mas as autoridades acreditam que o Brasil caminha lentamente para regulamentação que ao menos torne a concorrência mais justa, seguindo exemplos de Inglaterra, Itália, Turquia e Estados Unidos, em que grandes metrópoles limitaram ou até proibiram os aplicativos, como o caso recente da Colômbia.
Outra justificativa é a convicção da prefeitura de que os aplicativos operam uma estratégia de dumping: oferecem serviços por preços abaixo de mercado por tempo limitado a fim de quebrar a concorrência. Depois, se oferecem como a única alternativa ao preço que desejarem. O problema dos aplicativos, nesse caso, é que os motoristas podem abandonar o sistema pelo baixo rendimento financeiro com alta concorrência ou oferecer um serviço cada vez pior, o que já vem acontecendo em Porto Alegre.
— A cada blitz de trânsito a gente observa a degradação do serviço. São carros cada vez mais sucateados, acidentes com motoristas inexperientes, ligações a gás clandestinas... Por quanto tempo os passageiros vão continuar a se submeter a isso para poupar uns trocados? — questiona Berwanger.
Nesse contexto, o desafio do ônibus é se apresentar como alternativa melhor quando esse usuário desejar voltar. Manter-se rápido, seguro, monitorado via celular e — sobretudo — financeiramente acessível, parece ser um bom caminho.
Fonte: Gaucha ZH

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