Passageiros do DF sofrem com a falta de ônibus e precariedade do sistema
Longas horas de espera nas paradas, falta de abrigos, rotas alteradas, horários descumpridos e veículos lotados. Essas são as principais queixas dos usuários de ônibus da maioria das localidades do Distrito Federal. Desafios para o novo governo, iniciado há um mês, que herdou ainda o imbróglio judicial que envolve a licitação feita em 2011 para o sistema de transporte coletivo, em que cinco empresas (São José, Piracicabana, Urbi, Marechal e Pioneira) ganharam o direito de atuar em 786 linhas com os seus 2.708 coletivos (leia Entenda o caso), para atender de 600 mil a 650 mil pessoas (cerca de 20% a 21,6% da população do DF) por dia.
Em Águas Claras, cidade planejada e com Metrô, a população reclama da falta de ônibus que as leve às estações dos trens ou ao Plano Piloto. O problema se repete no Park Way, onde trabalhadores precisam descer em uma parada da Estrada Parque Indústria e Abastecimento (EPIA), na Quadra 14, e, dali, seguir em veículos piratas ou em uma carona. A quantidade e os horários de atendimento dos coletivos também deixam a desejar nos Lagos Sul e Norte e em Vicente Pires.
Diarista no Park Way, Betânia Bomfim Brito, 36 anos, raramente consegue ônibus circulares na região. Moradora do Riacho Fundo 2, ela sai de casa às 6h para entrar no trabalho às 8h. Faz três viagens para chegar ao destino: de casa para a Candangolândia; um até a Quadra 14 do Park Way; e outro, de lá ao local de serviço. Na maioria das vezes, a alternativa é o transporte pirata para chegar ao Conjunto 2 da Quadra 20. Depois disso, Betânia precisa caminhar 15 minutos até a residência dos patrões.
Os gastos com passagem somam R$ 30 por dia. “A salvação aqui são os transportes piratas. Quando tem fiscalização, a gente pede Uber ou volta para casa, porque não há outra alternativa”, conta a diarista. “Os ônibus não têm horário fixo para passar e, no período de férias, a quantidade de circulares diminui. Aos sábados, nem adianta ficar na parada, pois não há coletivos no fim de semana. Tenho família para sustentar. Não tenho carro e dependo de ônibus. É triste que a falta de transporte atrapalhe meu meio de sobrevivência”, lamenta Betânia.
Insuficiência
Leonardo dos Santos Passos, 33, mora no Areal e trabalha na portaria de um prédio na cidade vizinha. O veículo que faz o trajeto para onde ele reside não tem horário fixo e, muitas vezes, não cumpre a rota, deixando de passar na parada onde Leonardo espera. Mesmo com a proximidade entre a origem e o destino, o porteiro precisa sair de casa às 18h30 para chegar ao trabalho às 20h. “Saio do trabalho às 8h e, algumas vezes, chego em casa às 10h”, conta Leonardo.
O porteiro lembra das ocasiões em que só conseguiu ir para casa a pé devido ao fato de nenhum veículo ter aparecido em Águas Claras. “É uma caminhada que leva de 40 minutos a uma hora. Ter de andar isso tudo depois de trabalhar a noite toda, por falta de ônibus, é absurdo”, reclama.
Integrantes da Associação de Moradores e Amigos de Águas Claras (Amaac) reuniram-se com técnicos do Transporte Urbano (DFTrans) para discutir propostas de aperfeiçoamento da linha circular 0.951 (Circular Águas Claras-Taguatinga Shopping). A entidade sugeriu alterações de itinerário e de readequação da tabela de horários. Presidente da Amaac, Roman Cuattrin disse que, mesmo após a criação da linha circular, as reclamações dos passageiros continuam. “Os ônibus não estão cumprindo os horários e o trajeto não está sendo feito corretamente”, conta o líder comunitário.
Reprovação
Morador de Vicente Pires, Pedro Buriti, 19, precisa do ônibus para quase tudo no dia a dia. O estudante afirma que sempre teve dificuldades com o transporte coletivo e reprovou em uma disciplina da faculdade devido aos atrasos constantes. “Os ônibus daqui não têm horário certo para passar. Isso, quando passam. Eu chegava atrasado nas aulas ou faltava por causa deles e acabei reprovando”, afirma o estudante.
“Em Vicente Pires, o sistema de ônibus sempre foi defeituoso para todos os destinos. Várias vezes aconteceu de eu ficar uma hora e meia esperando na parada para ir à Rodoviária do Plano Piloto”, conta Pedro. O estudante também afirma que, frequentemente, os veículos deixam de passar em determinadas ruas, principalmente nas que estão em obras.
Demora
Moradora de Valparaíso (GO), Marinete Ferreira, 42, trabalha há 16 anos na QI 1 do Lago Norte. A doméstica precisa de dois ônibus para chegar ao trabalho. Ela sai de casa às 7h para conseguir chegar às 10h no destino. Para ela, o maior problema está em conseguir transporte da Rodoviária do Plano Piloto para o Lago Norte. “É comum eu ficar mais de 40 minutos esperando um ônibus no terminal. Quando chego cedo no emprego, é porque pego um transporte pirata que, muitas vezes, é a salvação”, relata.
Ao desembarcar, Marinete ainda caminha cerca de 10 minutos até a casa onde trabalha. “Frequentemente, chego atrasada no trabalho, mesmo saindo de casa com três horas de antecedência. Quando isso acontece, meus chefes reclamam. Tento explicar que é por culpa dos ônibus, mas, mesmo assim, é chato ficar levando bronca por algo que não tenho como fazer nada para melhorar”, observa Marinete.
Estudos técnicos
Por meio de nota oficial, o DFTrans informou que o número de ônibus das linhas é definido a partir de estudos técnicos e de campo, de modo que, sempre que necessário, há expansão da oferta. Se novos estudos apontarem para essa direção, a ampliação pode ser feita, segundo o órgão. A autarquia acrescentou que a rede de transportes é constantemente atualizada em busca de melhores serviços e maior eficiência.
O órgão acrescentou que os usuários podem sugerir mudanças nas linhas — como aumento de horários e mudança de itinerários — pelo telefone 162.
650 mil
Quantidade de pessoas que usam o transporte coletivo do DF diariamente
Entenda o caso
Procedimento fraudulento
A administração de Ibaneis Rocha (MDB) elaborou um edital para, caso seja necessário, contratar novas empresas para o serviço público de ônibus. Enquanto aguarda os desdobramentos no processo que invalidou a concorrência pública, a Secretaria de Mobilidade garante estar pronta para conceder novas permissões, em até cinco meses.
A sentença da 1ª Vara da Fazenda Pública contra a concorrência pública nº 01/2011 — realizada pela Secretaria de Transportes na gestão de Agnelo Queiroz (PT), que renovou o sistema público, com um montante de R$ 10 bilhões e a contratação de cinco empresas do setor — partiu de uma ação popular iniciada em 2013.
As autoras da ação alegaram haver um grupo econômico entre as empresas Pioneira e Piracicabana, vencedoras de diferentes lotes da disputa, e uma ligação entre a Marechal e a Piracicabana com o advogado Sacha Reck, que participou da elaboração do edital da concorrência pública.
“Se pudesse conferir um rótulo a essa concorrência, conferiria de engodo. A perpetuação desses contratos acaba por atingir a própria respeitabilidade institucional do Poder Executivo e, como consequência, exsurge intolerância de todos com a execução de políticas públicas, além de afetar o próprio princípio democrático”, declarou o juiz Lizandro Garcia à época.
Na decisão da 3ª Turma Cível do TJDFT, o desembargador Gilberto Pereira, relator do processo, frisou que “não houve nenhuma decisão judicial que permitisse a atuação de tais empresas, eis que a prestação de serviços por elas oferecidas teve origem em procedimento licitatório fraudulento, no qual se constatou a infringência a diversos princípios administrativos”. Segundo o desembargador, a participação de Sacha Reck infringiu os princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade.
Envolvidos na concorrência são réus por crimes relacionados com fraude em licitação em um processo na 2ª Vara Criminal de Brasília. Além de Sacha Reck, respondem pelas acusações o ex-secretário de Transporte José Walter Vazquez Filho, o ex-presidente da comissão de licitação Galeno Furtado Monte e os empresários Marco Antônio Gulin e Délfio José Gulin.
Prejuízos e soluções
Professor de finanças públicas da Universidade de Brasília (UnB), Roberto Piscitelli diz que os prejuízos de um serviço de má qualidade não provocam apenas impactos financeiros. As dificuldades podem ir do processo de procura de emprego, que tende a favorecer quem mora mais perto ou tem condições de se deslocar com mais facilidade ao trabalho, até desconfortos decorrentes do estresse das viagens. “Por ser caro, o transporte, muitas vezes, é um fator de desestímulo até para a contratação. O desgaste dos passageiros também tem um reflexo difícil de mensurar no desempenho dele. Isso ocasiona a redução do tempo de produtividade e do período que ele poderia dedicar ao lazer ou até a mais horas de repouso”, pondera Roberto.
Ele considera importante repensar a realocação das regiões de atividade econômica. Segundo ele, reduzir o movimento pendular diário da maior parte da população para o Plano Piloto investindo em núcleos em outras regiões favoreceria o deslocamento de moradores de áreas fora do centro.
Para o coordenador do Centro Interdisciplinar de Estudos em Transportes (Ceftru) da UnB, Pastor Willy González, a melhora de um sistema com problemas depende, fundamentalmente, de estudos. Entretanto, é necessário que essas avaliações recebam atenção apropriada e que os resultados sejam divulgados em tempo hábil. O especialista comenta que, no caso do DF, as mudanças dependem de uma gestão estreita entre governo e administrações regionais para que as demandas da população sejam atendidas.
Como possível saída, ele sugeriu a criação de um sistema complementar de transporte. A medida permitiria, por exemplo, que mais viagens ocorressem em menores intervalos de tempo e, consequentemente, provocassem menos prejuízos para as empresas de ônibus e para a população. “Um veículo de capacidade padrão é diferente de um micro-ônibus. Um modelo regular precisa atender um número determinado de pessoas para compensar os custos de circulação. Com coletivos menores, seria possível rodar mais e eliminar a questão da espera”, propôs.
Fonte: Correio Braziliense
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